Queria ter feito o CNU
Queria ter feito o CNU
O concurso público ocupa um lugar muito específico na minha mística pessoal. Acho que não apenas na minha, como na de grande parte dos brasileiros. Ele está ali pau-a-pau com o sonho de virar jogador de futebol ou cantora, que hoje foram modernizados e competem também com o sonho de virar influencer.
Até certo ponto da minha vida, nada alegraria mais minha mãe que ver suas filhas se tornando funcionárias públicas. Ela mesma é. Já ouvi trocentas vezes a história de como com o primeiro salário ela comprou armários de cozinha novos pra minha vó e pude viver toda minha vida contando com a estabilidade de uma funcionária pública.
Infelizmente dependendo do governo do estado, vez ou outra essa estabilidade foi abalada. Mas em linhas gerais, comparando com outras pessoas que eu conheço e que viram os pais perderem empregos, padrões de vida mudarem etc, tive uma vida até bem estável. Era estável como pobre, mas estável. A título de curiosidade, minha mãe é professora da rede estadual. É ou meio que era, porque em algum ponto depois de mais de trinta anos de sala de aula ela deu uma reprovada nas faculdades mentais e hoje exerce atividades administrativas. O ápice do funcionalismo público.
Eu nunca quis ser funcionária pública, ao mesmo passo em que eu acho uma carreira chiquérrima. Por exemplo, a prevaricação. Eu acho CHIQUÉRRIMO que exista uma palavra pra definir um crime específico cometido por funcionários públicos. Prevaricar é tipo quando um funcionário público não cumpre suas funções direito. Sim, é crime. Má vontade felizmente não é crime ou a população carcerária do brasil estaria recheada de funcionários público. Falo isso com TODO o respeito.
Mas aí também a gente entra em águas mais profundas, porque quem somos nós, meros funcionários (ou às vezes nem funcionários, desempregados) não-públicos para julgar os atos do funcionalismo, né? Se você é funcionário público, por favor, não se sinta ofendido. Nós, não-funcionários-públicos não fazemos a menor ideia do seu dia-a-dia submetido a inúmeros processos, trâmites, pessoas e, pior: garrafas de café da repartição onde o café já vem adoçado.
Não poderíamos deixar de falar também das várias festas de aniversário dos outros funcionários públicos, as quais pega mal que você não participe, e mais mal ainda se você só quer levar refrigerante toda vez, fazendo com que vez ou outra você precise passar num lugar perto do trabalho pra comprar salgadinhos superfaturados, ou pior: docinhos. Eu tenho extrema empatia e também admiração por vocês, os heróis que carregam nas costas (e nas mãos, e nas cabeças - geralmente com a saúde pouquíssimo mental) as engrenagens fazem a República girar.
Uma vez eu fui no Banco do Brasil (funcionário do Banco do Brasil não é funcionário público, mas na minha opinião é como se fosse) e fiquei lá longas horas esperando e divagando e observando os trabalhos deles. Me chamou atenção especialmente um idoso que lá estava executando qualquer coisa facilmente executável num caixa de autoatendimento, enquanto o atendente explicava e executava as demandas com muita paciência, ouvia histórias da vida dele, e no final ainda ganhou um brownie.
Eu fiquei fascinada e ao mesmo tempo extremamente tentada por aquela vida. Passar o dia sentada, num lugar com ar condicionado, realizando tarefas com protocolos bem exatos, ser protegida pelo sindicato dos bancários… Uma garota pode sonhar, né? Pareceu uma linha de vida extremamente sedutora para uma pessoa como eu, que vive com as imprevisibilidades de um ofício tão difícil, de influenciadora digital. E se ao invés de ter que diariamente vender minha vida e meus pensamentos em troca de likes, comentários e engajamento mapeado e entregue de acordo com algoritmos que eu não entendo, eu pudesse apenas entender o passo-a-passo de todas as nuances da minha profissão? E se ao invés de ganhar coisas grátis, tirar uma foto e ganhar o salário do mês de muita gente, eu me dedicasse a nobre tarefa de estar na linha de frente da construção de um país?
Infelizmente quando eu externalizei esse pensamento o público não foi lá muito empático comigo e eu acabei cancelada. Acabei aprendendo também que os funcionários de Banco (com todo respeito) são submetidos a metas irreais, lidam com as piores pessoas possíveis e tem índices altíssimos de doenças mentais.
Uma pena, eu sou apenas uma brasileirinha que queria viver minha fantasia de comer brownie no ar-condicionado e saber quanto eu vou receber todo mês, como todos nós que compartilhamos esse país e não nascemos herdeiros.
Mas ao contrário do que acontece no Banco do Brasil, eu não acredito que essa seja a realidade de quem trabalha pro Brasil. É muito legal a ideia de trabalhar pra um país, mesmo que seu trabalho vá ser, sei lá, puxar histórico escolar pra alunos numa Universidade Federal. Às vezes você vai ser fiscal do Trabalho, ou, na carreira pública que eu acho a mais legal possível, você pode ser fiscal da Receita Federal num Aeroporto, e, se for carismático e sortudo, ainda pode virar a estrela do programa Aeroporto Área Restrita.
Eu acho totalmente o melhor de todos os mundos.
Deus não dá asa a cobra mesmo, porque com a estabilidade de um cargo público eu sentiria uma segurança tremenda pra ser quem eu sou sem amarras. Quase sem amarras, apenas amarrada pelo punhado de coisas que me fariam ter uma exoneração.
Eu conheço uma pessoa com um cargo público que foi para o exterior e presenciou uma grande injustiça sendo cometida, mas ninguém de outros países se manifestou porque todos tinham medo de perder seus empregos. Essa pessoa não precisava ter esse medo, já que é funcionária pública e se posicionar contra a injustiça não feria em nada seus direitos e deveres. E então ela foi lá, se impôs, fez e aconteceu porque não precisava se amedrontar perante o mundo, pois o Brasil a protege. Eu achei isso o máximo.
E aí a gente vem pensar que o que separa a gente de uma pessoa que não precisa ter nada a temer (exceto pelos colegas de trabalho) não apenas no Brasil, como em todo mundo, é um concurso público!
O estigma do concurseiro nunca foi algo que me seduziu. O que vem depois do concurso sim, claro, mas a parte pré-concurso em que você fica estudando pra concurso, falando de concurso, se dedicando a concurso, sempre achei chata. Acho que ninguém acha legal, né?
Mas aí chegamos nele, o governo Lula 3. Entre as várias coisas que o presidente Lula democratizou o acesso, estão os concursos. Até então precisava-se de algum tipo de vontade e espirituosidade pra se tornar um concurseiro. Agora, com o CNU, o sonho da carreira pública ficou a apenas um clique de distância.
Se antes nossas mães nos mandavam o link do concurso da caixa econômica e a gente obviamente não iria se inscrever, com um concurso unificado todo o panorama concurseiro mudou.
Nós, do alto de nossos celulares e computadores, do conforto dos nossos lares e fazendo provas em bairros vizinhos (às vezes nem tanto), também teríamos a chance de nos tornar funcionários públicos.
Era um sonho que estava adormecido e que foi incutido no inconsciente coletivo por gerações e gerações e que assim, num passe de mágica, obtinha uma nova e empolgante possibilidade de se tornar realidade.
E foi assim, embarcando nesse sonho, que dois milhões de pessoas se inscreveram nessa, e se tornaram, sem muito pensamento prévio, concurseiros.
Tem uma passagem do filme Comer, rezar, amar que diz algo mais ou menos assim:
(Ler com voz de dublagem de sessão da tarde)
Tinha um cara que todo dia rezava e rezava e rezava pra um santo implorando pra ganhar na loteria. Um dia, o santo, irritado, virou pra ele e falou: SERÁ QUE DÁ PRA VC COMPRAR A PORRA DO BILHETE???????
O CNU para nós, era isso, o bilhete. Depois era só esperar o santo fazer o milagre, mas isso já é outra conversa.
Eu, assim como vários de vocês, também não comprei o bilhete. E nunca teremos como saber se era só isso que a gente precisava fazer pra ganhar na loteria (ou entrar no serviço público).
E aí isso tem me assombrado. O que não faz sentido uma vez que felizmente a essa altura da vida eu nem exatamente precisaria de um cargo público e nem tenho nada que indique que eu seria feliz ou realizada no serviço público, porque o que eu gosto mesmo de fazer é isso aqui (me comunicar). Porém foram anos e anos e anos de extensa hegemonia do pensamento de que o cargo público é a melhor coisa que pode acontecer com uma pessoa.
E eu meio que acho que é tipo a quarta melhor coisa, sendo a primeira, segunda e terceira ser jogador de futebol, artista ou cantor (de sucesso) e influenciador, respectivamente. Mas, tirando isso, ser funcionário público meio que é a melhor coisa do mundo, e talvez seja um pouco millennial da minha parte pensar assim, mas as coisas são como são.
Estou sim relativamente ciente de que fazer concurso público é tipo morar em vila, ou nascer: Você é enfiado sem aviso nem contexto em um grupo de pessoas as quais você não escolheu e vai ter que conviver com elas diariamente pelo resto da vida, e essas pessoas podem ser horríveis.
Mas entre conviver com gente horrível pra ganhar um salário mínimo e poder ser demitido ou ter estabilidade e ganhar vinte mil por mês, fico fácil com a segunda opção.
O que é bem melhor que as questões da vila e da família, porque enquanto essas duas você vai ter que aturar de graça, no serviço público você pelo menos é remunerado por isso.
Eu entendo que há questões muito mais profundas que isso mas não, não quero fazer um intenso mergulho nas nuances técnicas de ser funcionário público, estou escrevendo aqui num lugar de sonho e fantasia, onde nós, que não fizemos o CNU, queremos focar apenas nas partes boas.
Até porque para as partes ruins, caso fôssemos concursados, teríamos dinheiro pra pagar bons psicólogos. Ou para aproveitar nossas férias desopilando em resorts caríssimos.
Para além disso, eu acho muito importante participar de momentos históricos do país. Até hoje fico muito sentida de não ter estado na abertura das Olimpíadas em 2016 quando um cara falou em espanhol "Hoy," e todo mundo achou que ele tava falando "Oi" e respondeu com um uníssono "Oooooi". Me deixa muito triste pessoalmente não ter vivido isso. E o CNU.
Eu gosto muito de participar de momentos onde várias pessoas estão unidas com o mesmo propósito, seja ir a um jogo de futebol ou a um concurso onde 1% da população do país está participando e uns outros 30% estão cientes do que se trata.
É tipo o ENEM, que independente da idade a gente ainda companha, se interessa pelo tema da redação, vê quem se atrasou etc. Mas é um ENEM pra adultos, e o primeiro que teve na história do país. Gostaria de ter sido testemunha não apenas ocular, mas também presencial. Queria ter estado ali e sentido a sensação de fazer a prova, e também porque acredito que, vai que, eu poderia ser golpeada por um golpe de sorte e ser empurrada para o meu verdadeiro destino: Fazer não sei o que na vida pública.
Acredito que muitas pessoas comunguem comigo dessa angústia, de não terem dado pelo menos uma sorte para a sorte, de não terem tido que se preocupar em ter uma caneta preta com corpo transparente pelo menos mais uma vez na vida.
Fazer o CNU é o equivalente a jogar na loteria, guardadas as devidas proporções uma vez que infelizmente o CNU demandava um pouco mais de preparação e esforço ativo e também que hoje em dia dá pra jogar na loteria pela internet.
Quando chegaram os relatos do CNU, a decepção foi ainda pior. As informações sobre o grande nível de abstenções, de pessoas que não assinalaram o gabarito, entre outras coisas, forneceram a sensação de que a se a gente tivesse se esforçado UM POUQUINHO, dava pra passar.
O que não é verdade, provavelmente não ia dar não.
Mas nós, pessoas que gostamos de desistir antes de tentar, gostamos de criar este argumento lúdico para que, ao mesmo tempo em que nos corroemos pela culpa do que não foi, reforçamos também a crença positiva no que não fomos e não somos. Num suposto potencial que poderíamos realizar, mas que talvez nem tenhamos.
Desculpa pesar o clima, pessoal!
Vão existir (talvez) outros CNU`s para que possamos provar nossas teorias, nossos limites pessoais e nossa tendência a ter sorte. No pior dos casos, estaremos também ajudando na arrecadação do governo pagando por um concurso que, como várias outras coisas em nossa vida, mais uma vez não iremos realizar.
Um abraço!
Krish, que delícia ler sua escrita. Fiz o CNU, quase desisindo até o último minuto, e não sei se valeu a pena até agora, mas foi boa a sensação de ter tentado a sorte ao menos. Obrigada por compilar tão bem todas as crises e sentimentos derivados dessa experiência geracional com concursos públicos, como quase sempre, senti que me entendo melhor depois de te ouvir compartilhar seus pensamentos!
Eu me inscrevi pro CNU mas pensei muito em não ir. Não estudei, bebi a noite anterior madrugada a dentro, acordei de manhã sem nem uma caneta nem garrafa de água (que comprei na porta do colégio) e tô achando o máximo ter participado disso mesmo só acertando 60% da prova.